quinta-feira, 14 de julho de 2016

CARTA DE UM AMIGO – M.



Apesar do título, essa carta eu achei no lixo. Há muito tempo, achei livros velhos de Direito jogados na rua (detesto quando vejo livros jogados nas ruas, é como se conhecimento fosse lixo). É claro que nunca faria Direito, apenas andaria com os livros para denotar certo “grau superior”. Ou talvez eles ajudassem a apoiar minha mesa de centro cuja perna está quebrada.
Dentro de um livro de direitos do trabalhador, encontrei uma carta, vindo de um remetente, o qual chamarei de “Dilma”, e um destinatário, que chamarei de “Aécio”, apenas para preservar os nomes verdadeiros utilizando nomes totalmente isentos de qualquer elucidação.
Pois bem, ei-la.
Querido Aécio,
Quero nessas humildes palavras agradecer tudo o que passamos juntos. Todos aqueles momentos foram mágicos, para não dizer fantásticos. Sempre sonhei com dias assim, e com você tudo se realizou. Desde que te conheci, na faculdade de ergonomia, me postei melhor. Agora sou uma mulher realizada, e posso expressar isso sem um mínimo de vergonha na minha cara bochechuda.
Lembra-se daquele passeio que demos pelos corredores de mãos dadas e, sem querer, dêmos uma rasteira da professora de judô? Nunca vou esquecer as pancadas que você levou por mim! Foi incrível. Acho que é amor...
Suspiro quando me lembro dos nossos piqueniques na grama do campus, das festas da faculdade e das aulas chatas de física quântica em que você, sempre compreensível, as tornava mais agradáveis quando atirava bolinhas no professor.
Sinto falta do refeitório universitário, das formaturas, das reuniões de medicina e dos levantamentos topográficos nos campos de futebol! Sinto falta dos lanches gratuitos que você me proporcionava truculentamente! E do nosso lema: “Quando vejo que estou passando dos limites, continuo pra ver até onde vai dar. Só não sinto falta daquele último dia.
Nunca vou esquecer, mesmo com muito pesar, daquele dia 13 de dezembro de 1973. Quando a polícia descobriu que estávamos frequentando a universidade sem termos sido aprovados em nenhum curso. Raios! Como podem fazer isso conosco? Na verdade, eu sabia de tudo, peço-lhe desculpas por não te dizer que nós não podíamos estar ali. Mas hoje, 10 anos depois, reconheço que não fizemos a coisa certa. Ainda acho que não deveríamos ter apedrejado o laboratório de química, que desencadeou aquele incêndio e destruiu dois prédios inteiros do complexo...
Não se preocupe, pois dentro de 25 anos estará em liberdade! Sei que não foram fáceis todos esses anos na cadeia, mas saiba que sempre te admirei pelo seu ato de ter assumido a culpa sozinho! Sei que houve rebeliões e que você foi o único que não fugiu, fiquei orgulhosa! Sempre soube que era honesto. Ainda não entendi o motivo de você ir para uma penitenciária de segurança máxima logo após, mas deve ser bom, pois lá você estará ainda mais seguro.
Sei que não tenho escrito muitas cartas, essa na verdade é a primeira. Desde então, me casei. Espero não ficar irritado, sei que prometi que casaríamos depois de 35 anos separados, mas no quinto dia útil após sua prisão resolvi me casar, pois o tempo demorava a passar. Tenho cinco filhos, de seis casamentos. Hoje vivo de pensões, mas já trabalhei alguns dias.
Apesar disso, ainda aguardo ansiosamente pelo seu retorno. Sei que ainda temos muito em comum, e que mesmo depois de 35 anos ainda poderíamos recomeçar de onde paramos. Visitar o campus, pegar uns livros na biblioteca ou assistir aulas de biologia e astronomia, usar os banheiros sem dar descarga, sei lá.
Sinto sua falta, Aécio. Sinto falta de dinheiro também, mas isso todo mundo sente. A não ser os vendedores de algodão doce! Eu compro todo dia! Eles devem estar montados na grana! Quem sabe eu não case com um vendedor de algodão doce? Acho que ainda dá tempo, faltam 25 anos para sua saída da prisão...
Enfim, sinto sua falta. Apenas me procure naquela mesma casa da árvore de 10 anos atrás, ainda estou lá.
Com saudades,
Dilma”
Dentro do mesmo livro, encontrei o diploma do “Aécio”, ele saiu da cadeia em 2008 e formou-se em Direito em 2013. Processou “Dilma” em 2015, e pediu sua retirada da casa de árvore, mas não ganhou.
Peguei o endereço da tal casa da árvore e fui até lá. Pasmem, os dois haviam voltado. Estavam novamente na ativa. Soube quando os vi correndo vindo do campus. Eles tinham a mesma idade: 80 anos.
Amizade é isso. Destruir o físico para construir o moral. Ou algo assim.





Nota: O lema destacado é uma frase de autoria do Moralista, mesmo que ele não tivesse nascido ainda em 1983, pois, levando-se em conta que ‘achado não é roubado’, a carta estava no lixo.





0 comentários:

Postar um comentário