sábado, 25 de junho de 2016

QUANDO DESCOBRIRAM A AMÉRICA – M.



Meu outro amigo, Leopoldo, estava na sua varanda tomando suco de naftalina, quando aquele vento chegou e quase destelhou a casa e o restante de cabelo que ele ainda tinha. Era um toró. Sua mulher ordenou que recolhesse a roupa, mas ele não sendo bobo, passou a informação ao seu filho de 3 anos. O guri, corajoso e quase levantando vôo na ventania, recolheu a roupa com uma taquara. Foi quando um rebuliço de poeira apareceu próximo da porteira. O outro filho, de 14 anos, apontou e disse:
- Vejam aquilo!
Já ali eu já desconfiava que o raciocínio naquele ambiente estava meio atrasado. Bom, o rebuliço era eu. Tinha acabado de sair do ônibus e tropecei em um carrapato. Como era uma ladeira, e o vento estava mais intenso que juros de banco, eu rolei morro abaixo. Mas, enfim, havia chegado ao meu destino mais rápido (e mais sujo também).
Leopoldo pegou um balde de água e jogou na minha cara. Quando a poeira sumiu, ele disse:
- Ah, é você!
- Sim, sou eu – respondi. E o balde não era de água, enfim.
- Mas te senta na cadeira e me conta as novidades, Jurandir – disse ele, contaminado pela naftalina.
Tive que contar as novidades, desde o chá de fraldas que minha mãe fez antes de eu nascer até o banho de alvejante que levei na cara. E isso que já o havia visitado semana passada. A memória sem dúvida é um grande radar, mas não chega a ser um GPS. Ou seja, seja o que for, a parte interessante não se encontrava nessa introdução. Mas sim no desenrolar.
Um dos filhos da faixa etária de 3-10 anos de Leopoldo estava em seu quarto, escrevendo em um caderno, por um longo tempo. Isso me deixou curioso, dado que a cultura do restante da casa estava mais deprimente que ouvir MPB remixada. Sem contar em ditos como “é hoje que o Abreu mata a Teresilda?”, “sim, estava no resumo do jornal”. Eu não podia entender como um jornal resumia um crime premeditadamente. Apenas fiquei em silencio e com medo, pois havia risos durante o falatório e conclusões do tipo “ela merecia”. Aquele caderno parecia ter algo mais interessante.
Algo me fazia acreditar na máxima “a criança é o futuro do país”. É óbvio que ela é o futuro, mas qual futuro? Vendo por ai, estava mais próximo do futuro do pretérito; mas, lá no fundo do túnel de trem que ainda não inaugurou, existia uma esperança de que, um dia, esse futuro se tornaria presente. Nem que fosse num consórcio de 35 anos.
Levantei-me, quando o assunto da lesão do lateral direito do time inexpressível local havia terminado, e disse que iria ao banheiro. Na verdade eu já estava num banheiro, onde a latrina eram os ouvidos. Fui na verdade ver o que o menino anotava, pois escrevia tanto que achei que fosse um monge mirim. Bati na porta, sem medo de estragar a inspiração que ele tinha no meio da não-inspiração do lar.
- Estou atrapalhando? – perguntei.
- É uma pergunta ou uma constatação? – disse ele.
Nossa! Ele me respondeu como eu respondo em pensamento para todos. Isso me fez lembrar de uma frase: Se meus medos tomarem conta de mim, desisto, pois sou um baita medroso. Isso dizia muito sobre mim.
- Bom... Desculpe!
- Não tem problema. O que você quer?
- Fiquei curioso com sua dedicação aos manuscritos, por acaso escreves algo em especial?
- Estou trabalhando em uma teoria que rebaterá a relatividade de Einstein. Fiz algumas ponderações quanto aos movimentos celestes nos últimos dois anos, e se as integrais dos deslocamentos registrados forem confirmadas na teoria, posso alterar alguns conceitos conhecidos da astronomia.
De começo, achei que ele andava assistindo muito filme de faroeste, mas ao ver a quantidade de anotações que ele havia feito relacionadas aos movimentos celestes num certo período de tempo, fiquei espantado. Abismado. Maravilhado! Mal podia acreditar que um garoto franzino que morava onde o Judas perdeu o diploma do supletivo era um gênio. E suas teorias estavam visivelmente corretas.
Olhei folha por folha, questionei-o quanto as implicações. Ele respondeu tão naturalmente que colocava uma banca de doutorado no chinelo. Mas tudo estava indo tão bem que não me dei conta do tempo-espaço.
Uma gritaria vinha da sala. A mulher de Leopoldo chegou no quarto e disse que um dos filhos da faixa etária de 15-22 havia descoberto algo impressionante: quando se colocava esponja de aço na ponta da antena da TV, a imagem melhorava. Eu não acreditava no que estava ouvindo. Dei de ombros. Como se adiantasse. A mulher me pegou pelo braço e me carregou até a sala para ver o ocorrido. Sim, o sinal parecia melhor. Mas a festa mal havia começado. Leopoldo sacou a viola e começou a tocar músicas para animar o ambiente, como se já não bastasse à euforia descontrolada. Eu entrei na roda, se não sairia rodando. Num certo ponto, Leopoldo disse:
- Vamos fazer uma fogueira!
E saíram todos para a rua, comigo e tudo mais. Amontoaram madeira, moveis estragados, entulho, guias de TV, tapetes, o cachorro, palha, etc. E tacaram fogo. Eu tentava entender se a comemoração era apenas uma desculpa por uma alegria momentânea entre a família. Não parecia, dado que os filhos carregavam sofás, camas, armários, demonstrando a certo ponto cansaço, mas sorriam como doidos. Notei que havia um conflito entre as formiguinhas que carregavam os móveis de casa. Não deu tempo de ver o que era, mas pude entender logo. Um dos filhos, este já da faixa de 23-29, jogava os cadernos do filho da faixa 3-10. Quando vi, não tive outra reação a não ser cair de joelhos e gritar:
- Nãããããããããããoooooooooo!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Todos me olharam com desprezo. Inclusive o guri 3-10, que afirmou:
- Eles me convenceram que a imagem da TV havia melhorado.
Estava tudo acabado. Prêmio Nobel, riqueza, periódicos, nada mais. Senti-me como um índio tentando provar que havia chegado primeiro à América. Em vão.
Fui para a casa, desolado. Já era noite e tinha que trabalhar (ou fingir) no dia seguinte. Peguei no sono. 15 minutos depois, madrugada adentro, ouço batidas na porta. Quando abro, ainda tentando abrir os olhos também, me deparo com Leopoldo e sua numerosa família.
- Podemos ficar aqui essa noite?
Eles haviam queimado a casa inteira no fogaréu. Eu ainda morava num JK sem quarto. A noite era uma criança. Mas algo me fez continuar pensando no futuro das crianças, apesar de tudo. O menino 3-10 me confessou: havia jogado a TV na fogueira. Ao menos ninguém mais morreria premeditadamente por um longo tempo.




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